Confira matéria publicada no “Segundo Caderno” do jornal “O Globo” em 14 de fevereiro de 2010.
‘Lixo extraordinário’ de Vik Muniz em Berlim
Filme mostra projeto do artista no Jardim Gramacho
Filme mostra projeto do artista no Jardim Gramacho
De longe, qualquer imagem pode parecer incrivelmente bonita. Mas e de perto? O artista plático brasileiro Vik Muniz, conhecido por utilizar materiais pouco usuais em suas obras, inclusive lixo, resolveu deixar o conforto do estúdio para se aproximar do cotidiano de catadores de lixo num aterro sanitário do Rio de Janeiro. A expeiência deu origem ao ocumentário “Lixo extraordinário”, dirigido pela inglesa Lucy Walker e codirigido pelos brasileiros João Jardim (“Janela da alma”) e Karen Harley (montadora de “Baixio das bestas” e “Cinema, aspirinas e urubus”, entre outros). O filme estreou no Festival de Sundance, nos Estados Unidos, em janeiro, conquistando o prêmio World Cinema Audience, dado pelo público. Agora, o documentário chega à Europa, com sua inclusão na mostra Panorama do Festival de Berlim, onde foi exibido no último dia 14.
Vik Muniz: artista retratou os catadores do aterro sanitário em Jardim Gramacho
Catadores ficaram com lucro das fotos
O projeto de “Lixo extraordinário” começou pelo interesse de Lucy e dos produtores Angus Aynsley e Peter Martin no projeto de Vik. A diretora, porém, explica que não queria fazer um documento “padrão”, mostrando linearmente cada faceta da obra do artista.
“Eu queria fazer um filme para cinema, com bons personagens, dramatização, tudo isso. O desafio era buscar um ponto de vista que fugisse do óbvio”, diz ela, que há três anos recebeu o prêmio e público no festival alemão pelo documentário “Blindsight”, sobvre adolescentes tibetanos cegos que escalaram o Monte Everest.
Foi pela conversa com os produtores do filme que nasceu a ideia da série de retratos “Pictures of garbage”, de autoria de Vik. Ela viajou para o Rio e visitou o Jardim Gramacho, maior aterro sanitário da América Latina em volume de lixo, acompanhado por uma equipe de cinema. O projeto consistiu em fotografar os catadores em seu ambiente para, depois, reproduzir as imagens em estúdio, usando material recolhido do lixo. A série foi leiloada, e o dinheiro, mais de R$ 250 mil, doado aos catadores.
Numa das cenas mais tocantes do documentário, Tião Santos, presidente da Associação de Catadores do Aterro Metropolitano de Jardim Gramacho, diz para Vik que ainda vai progredir a ponto de comprar o quando com seu retrato de volta.
“Não sei dizer se o filme me transformou de alguma forma. Acho difícil afirmar que filmes transformam cineastas. Mas a coragem e a dignidade daquelas pessoas são uma inspiração para mim”, afirma Lucy. “O próprio Vik dizia que ele poderia estar na situação deles, por causa da infância difícil que viveu”, completa.
Mais do que um protagonista, Vik é uma espécie de apresentador de “Lixo extraordinário”. Ele vai conduzindo as conversas com os personagens com humor e afeto, enquanto prepara sua arte. “É horrível como algumas pessoas no Brasil realmente acreditam que são melhores do que as outras”, diz ele, numa cena do filme.
Para as filmagens no Brasil, foi firmada uma parceria com a produtora O2, o que levou Hank Levine a também assinar a produção, e Fernando Meirelles, a produção executiva do documentário. Lucy precisou se ausentar das filmagens ainda no início, e foi então que João Jardim e Karen Harley foram chamados para integrar a equipe. O corte final, porém, foi da cineasta inglesa.
“Quando olhamos para a vida deles, e, depois, para a nossa, aprendemos uma lição. O que mais me impressionou neste trabalho foi a força de vontade e a persistência que os catadores precisam ter para estar direto no sol e na chuva em Gramacho, no meio de toneladas de lixo. Eu me perguntava: que país é este, o nosso, que coloca no lixo esta gente tão forte e perseverante?" diz João Jardim.
“Lixo extraordinário” começa e termina num mesmo cenário, o “Programa do Jô”, da Rede Globo, o qual a revista americana “Variety” chamou de “talkshow egocêntrico” em sua crítica do filme, publicada há duas semanas, após a exibição em Sundance. Primeiro Vik Muniz e, depois, Tião Santos, são entrevistados. Tião definiu bem, e ao vivo, o que o trabalho de Vik provocou. “Posso fazer uma correção, Jô? A gente não é catador de lixo, é catador de material reciclável. Lixo é aquilo que não tem reaproveitamento. Material reciclável, sim”, diz ele.
Esse ganho de autoestima só tende a crescer caso uma das metas dos produtores de “Lixo extraordinário” seja alcançada: exibir o filme num telão armado em pleno Jardim Gramacho.
Texto: André Miranda/O Globo/Berlim
Foto: Mônica Imbuzeiro/30-11-2009
Nenhum comentário:
Postar um comentário