segunda-feira, 21 de julho de 2014

“Mega diversidade, micro responsabilidade”, por Marina Silva

Imagine uma conferência internacional para regulamentar o uso do petróleo em que a Arábia Saudita participa apenas como observador, sem ter direito a votar. Impensável, não é mesmo? Mas o Brasil mostra que o impensável não é impossível. Na próxima conferência das Nações Unidas sobre Biodiversidade, que será realizada em outubro deste ano, na Coréia, o Brasil vai participar apenas como observador. E o Brasil é simplesmente o gigante da biodiversidade: estima-se que nosso país tenha 20% de todas as espécies vivas do planeta. Como não vamos poder votar nas decisões internacionais?
O “rebaixamento” do Brasil é impensável, também, pela incoerência: afinal, fomos nós que propusemos, elaboramos, participamos de todas as iniciativas para regulamentar o acesso aos recursos da biodiversidade – somos os principais interessados – e fomos os primeiros a assinar o Protocolo de Nagoya, proposto na conferência de outubro de 2010.
Eis aqui uma coincidência que vale a pena notar: em outubro de 2010 tivemos eleição para Presidente da República. Lembremos que no ano anterior o Presidente Lula e a Ministra da Casa Civil, Dilma Rousseff, o governador de São Paulo, José Serra, e várias outras autoridades políticas tinham ido a Copenhague para a Conferência das Mudanças Climáticas. Todos queriam mostrar compromisso com a agenda ambiental e capacidade de manter a liderança internacional que o Brasil tinha obtido nos anos anteriores.
E o que mudou, nesses quatro anos? Não foi a importância da biodiversidade. O mundo ainda procura com urgência melhores formas de aproveitar os alimentos, remédios, cosméticos, inspiração para criação de novos produtos e materiais com base em tudo o que a natureza dá e gera um volume espantosamente alto de recursos, despertando uma corrida pelas patentes, pesquisas, inovação tecnológica e mercados. Para o Brasil, a biodiversidade é uma galinha dos ovos de ouro, um verdadeiro passaporte para o futuro.
O que mudou foi o endereço dos votos. O governo agora é refém da bancada ruralista, que não permite o avanço da legislação internacional de proteção da biodiversidade com a desculpa de que quer fazer pesquisas sobre a soja, uma espécie que tem origem na China. Ora, a Convenção da Biodiversidade diz expressamente que a soberania dos países e as leis nacionais devem ser respeitadas. As empresas brasileiras, americanas, canadenses, de qualquer país, podem pesquisar a soja existente em seus territórios, mas não podem entrar no território chinês sem permissão do governo da China. E nem precisam, porque a soja é uma planta disseminada em todo o mundo.
Mas e as plantas que nascem no Brasil, na Amazônia, no Cerrado, no Pantanal, a maioria desconhecida, uma reserva inestimável que temos? Com essas, o problema não são os chineses. São os índios, quilombolas, extrativistas, ou seja, a porção do povo brasileiro que a base social atrasada do governo não quer favorecer. Imagine,  criar mecanismos e requerimentos legais que possibilitem aos pesquisadores e empresas estrangeiras a retribuir os lucros dos produtos originários das florestas e dos conhecimentos dessas populações na forma de saúde, educação, reconhecimento e valorização de seus direitos e saberes.
Para ter voz ativa, para defender suas riquezas naturais, o Congresso Nacional do Brasil deveria ter ratificado as propostas do Protocolo de Nagoya. Mas o assunto está parado no Congresso desde 2012, designado para uma comissão especial que nunca foi criada. Na semana passada, quando o número mínimo de 50 países colocou as propostas do Protocolo em sua legislação nacional, houve comemoração em todo o mundo, especialmente dos países com grande diversidade: Índia, México, África do Sul, Peru, Honduras, Panamá, Uruguai e muitos outros. Mas houve alegria também em vários países desenvolvidos: Noruega, Dinamarca, Espanha e Suíça já haviam ratificado o Protocolo. O Parlamento da União Européia, em abril deste ano, autorizou sua entrada em vigor nos países do Velho Continente.
O que ninguém entende é o retrocesso do Brasil. Entender até dá para entender, o que não se pode é ser complacente diante do descaso com uma das mais ricas diversidades biológicas do mundo e aceitar.
* Marina Silva 

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